sábado, 20 de novembro de 2010

Caminho através do campo.


Sentada em um ônibus metropolitano, uma velhinha observava melancólica a grama alta que era delicadamente beijada pelos raios da esfera luminosa. O amarelo triunfava exuberante. Não seria insólita uma criatura invejosa de uma planta gramínea?  Eu mesmo já vira muitas moças cujo orgulho fora ferido pela beleza de uma rosa. Dir-se-ia, no entanto, que essa grama tinha uma feição singular. A luz que a acariciava dava-lhe o inefável aspecto de um leão altivo, cuja excitação tornou eriçados os seus pelos exímios. Eram cinco ou seis horas da tarde. Logo o sol se poria. A intensidade de seu fulgor, contudo, deixava claro que essa estrela, que gostava de ser o centro das atenções, não estava disposta a ir dormir tão cedo. A senil mulher fixava agora seus olhos aos relevos de mares de morros. Tapetes que variavam do verde vivo ao dourado cobriam esses morros quase completamente, ao passo que em algumas partes era possível ver a rocha exposta. O cobre da rocha invadia sutil o mar verde- dourado, criando uma imagem selvagem, que, por sua vez, conferia-lhe um ar de algo inexplorado. Havia ali, também, um raso rio que cortava timidamente os limites entre a estrada asfaltada, por que passava o ônibus, e os morros. A essa cena ambígua, entre o urbano e o campestre, juntavam-se alguns cavalos, que bebericavam a parca água do rio, e algumas vacas, que eram atraídas pela beleza do gramado selvagem, vivo. Algumas choupanas aqui e ali acrescentavam ao lugar uma simplicidade que dificilmente seria encontrada no centro urbano de onde vinha aquela fatigada viajante. Os seus olhos de anciã passeavam calma e minuciosamente cada parte da paisagem, nada podia passar despercebido... Agora as vistas subiam aos céus que convergiam do azul límpido e imaculado ao amarelo-avermelhado. Era o sol que, embora oferecendo resistência, já morria. Algumas nuvens disformes se moviam subrepticiamente. O movimento das folhas das vastas árvores, que mais acima do morro se encontravam, indicava que lá fora o vento era forte. A contempladora se aproximava de sua parte dileta. Suas vistas em breve alcançaram uma parte do morro que tinha a indescritível forma de escada... Eram três ou quatro degraus que se estendiam ambiciosamente pela paisagem. O infindável tapete verde e as árvores protagonizavam a cena, enquanto a velhinha, perdida em seus pensamentos, imaginava-se subindo descalça aquelas extraordinárias escadas... Adiante, amores-perfeitos amarelos acenavam, o que lhe dava uma sensação de tranqüilidade.
Voltando o olhar ao céu, invejava as aves que ali voavam livres... Paulatinamente, a cena ia se urbanizando, e a passageira embevecida tornava seu olhar para dentro do ônibus. A maioria dos passageiros dormia. Alguns poucos conversavam entre si ou ao telefone, provavelmente indiferentes à paisagem lá fora. Constatando isso, voltou a abrir o seu livro, enquanto girava a cabeça para trás, como que retribuindo o aceno dos amores-perfeitos que ficaram pra trás. Depois, continuou a leitura que havia interrompido.

p.s.: Ouvindo "Pride and Prejudice soundtrack"; ''Clair de lune'', Debussy. 

Uma pintura favorita:
Caminho através do campo, de Renoir. 1874, óleo sobre tela, Musée d'Orsay (França).
"As pequenas pinceladas que fazem vibrar a tela expressam as sensações experimentadas em um dia bonito. Uma simples mata adquire o mesmo valor de um personagem e matizes de amarelos e verdes, salpicados de vermelho e branco, bastam para Renoir inventar um universo". (...) "Esse caminho conduzia ao moinho de Orgemonte, onde se descotinava umas das vistas mais belas de Paris.(...)"  
(fonte: CAMPS, Teresa, professora titular de História da Arte; Universidade Autônoma de Barcelona; Coleção Folha, Grandes Mestres da Pintura, nº16.) 

domingo, 14 de novembro de 2010

Os corvos de Rimbaud e os corvos de Van Gogh.


Os corvos - (Rimbaud)

Senhor, quando os campos são frios 
E nos povoados desnudos
Os longos ângelus são mudos…
Sobre os arvoredos vazios
Fazei descer dos céus preciosos
Os caros corvos deliciosos.

Hoste estranha de gritos secos
Ventos frios varrem nossos ninhos!
Vós, ao longo dos rios maninhos,
Sobre os calvários e seus becos,
Sobre as fossas, sobre os canais,
Dispersai-vos e ali restais.

Aos milhares, nos campos ermos,
Onde há mortos recém-sepultos,
Girai, no inverno, vossos vultos
Para cada um de nós vos vermos,
Sede a consciência que nos leva,
Ó funerais aves das trevas!

Mas, anjos do ar, no alto da fronde,
Mastros sem fim que os céus encantam,
Deixai os pássaros que cantam
Aos que no breu do bosque esconde,
Lá, onde o escuro é mais escuro,
Uma derrota sem futuro.

  Intertextos:
Lendo Os corvos, de Rimbaud, lembrei-me do Campo de trigo com corvos de Van Gogh. Interessante observar que sensações ímpares e similares foram experimentadas com formas artísticas tão distintas. 
Enquanto os poemas do Rimbaud me transportam para os quadros de Van Gogh – além de Renoir –  os quadros desses dois mestres da pintura, por outro lado, configuram verdadeiras imagens poéticas na mente de seu contemplador. Imagens poéticas que me conduziram, mais uma vez, às paisagens bucólicas de Jane Austen, Ian McEwan, Emlily Brontë, Frances Hodgson, Florbela Espanca, Rimbaud etc etc...
Os corvos de Van Gogh ilustram angústia, solidão e impotência em um campo de céus sombrios, de mares de trigo cujas ondas não permitem uma travessia, uma saída. Aí reina o silêncio, além de uma imensidão muda e incerta, constatada pelas pinceladas fortes, rápidas e aparentemente aleatórias, imprimindo a sensação de caos...  
Os corvos de Rimbaud nos despertam para presença da fria face da morte, do mau presságio. 
Se observadas paralelamente ao Campo de trigo com corvos, essas aves das trevas, que se acercam da carne solitária, vazia, no poema rimbaudiano, preenchem de significado discursivo a obra pictórica vangoghiana.