sábado, 24 de abril de 2010

Um mundo maravilhoso.


Roda, roda o mundo
Enquanto gira o ponteiro,
Vede a beleza do segundo!
Regozija-se o relógio prazenteiro
Carrega-o, atrasado coelho branco
Fruto onírico da doce menina
Que navega sobre o próprio pranto
Crescer e amiudar, eis a sua sina!
Nesse mundo em que nada há de comum
Sorrisos e listras de Cheshire, o gato
Deliciam-nos Tweedledee, Tweedledum
Corra Alice, sem tênue hiato
Para ser, no mundo inverso, rainha exímia.
À noite, percorrendo os óbices e o riacho
          E com louco chapeleiro, chás e charadas do dia


  Comemoremos, então, nossos desaniversários!
       Com a Lebre de Março e o Humpty Dumpty
            Que, zombeteiro, explica os poemas extraordinários
       Pois só aqueles que são puros de coração
          Alcançam o sentido pueril. Nã’o faz nem nobres             
    Estes pequenos reis sem imaginação.
            São, pois, no país maravilhoso, meros pobres,
      N'sta rica dança a que Lewis Carroll      
deu notas e passos. Aí quem roda é criança    
'Rod'a roda, para se secar quem se molhou'
Rod’a roda pois aí vem nos deitar de pranto, o mar
Roda, roda para girar o mundo que Alice sonhou.
                                               

Pintemos nossas rosas de carmim
Para não termos um terrível fim.

Vede a vida como um louco chapeleiro
Vede como estes singelos versos de fevereiro...









Antes de tudo, esse acidente literário se deu em fevereiro desse ano, quando eu havia acabado de ler dois livros...
Eu sei que falta agudeza às idéias do poema (?) e, sobretudo, uma boa estética, métrica. Esses, porém, são talentos de que, infelizmente, sou totalmente destituída. Em matéria de verso, admito e já admiti, sou medíocre. No entanto, esses versos obtusos surgiram num momento em que a minha vontade de versejar as aventuras – e a genialidade intrínseca a elas – que acabara de ler superou o meu bom senso – este que me tirava a ousadia de versificar minhas toscas visões.

As idéias, a vontade de "poetar" e a fraqueza do meu bom senso (!) vieram por ocasião da leitura de duas obras inefáveis: “Alice no país das maravilhas” e seu seguimento, “Alice através do espelho”. Duas obras, cujos valores literário e histórico inestimáveis, já faziam fama na época de seu lançamento, na Era Vitoriana. Compostas com maestria pelo matemático britânico Charles Lutwidge Dodgson, (conhecido pelo seu pseudônimo Lewis Carroll) essas aventuras – ou desventuras? – seriam, posteriormente, um divisor de águas da Literatura clássica, em que de um lado havia o gênero sério, no máximo joco-sério e, de outro, o surgimento do gênero nonsense. Carroll é, inclusive, um dos poucos autores desse gênero. Sob uma perspectiva insólita e uma mente arguta, Lewis começou a escrever em 1862 uma fantástica história que em 1951 ganharia uma deliciosa versão da Disney – um marco da minha infância -. Em 2010, ‘re-produzida’ por Tim Burton, ganha uma nova recepção, e, saliente-se, nova acepção para o público. No entanto, ler Alice só por ocasião do lançamento de um filme que promete ser sucesso no Brasil – já consagrado nos E.U.A. -, pode ser decepcionante àqueles que se apaixonaram pelo gênero nonsense, por cada personagem e por seus respectivos relacionamentos e diálogos travados com a singular Alice.
O prazer de ler Alice é muito anterior, ou vai muito além, ao prazer de vê-la – a história - reproduzida sob os ardis da tecnologia contemporânea e sob a capacidade ‘hollywoodiana’ de vulgarizar – no sentido de tornar clichê e à semelhança de tudo que já produziu - histórias que em sua essência são singulares. 
Por outro lado, ler Alice é – ou pode ser, depende do ‘histórico’ do leitor - uma experiência insubstituível àqueles que guardavam na memória tênues lembranças de Alice na infância, desde livros, lancheirinhas escolares, primeiras tentativas de desenhar uma personagem idolatrada, temas de aniversários – e desaniversários – ao desenho da Disney.  Ler as obras foi, para mim, reacender minúcias de uma infância tão bem vivida. Revivi sensações, pelo resgate de lembranças da meninice, além de conquistar novas impressões que Lewis Carroll é excepcionalmente capaz de proporcionar por seu evidente conhecimento sobre o universo infantil. O excêntrico escritor conduz de forma tão palatável, mesmo ao público adulto, esse universo infantil por sua habilidade de tecer ingênua e, ao mesmo tempo, sabiamente seus enredos e personagens. E não se engane: A literatura ''carrolliana'' é nonsense, mas no que diz respeito ao seu caráter surreal, feérico e aparentemente ilógico. No entanto, o que Lewis Carroll faz é desafiar essa lógica, não bani-la. Deixa-se de observar abusivamente uma ordem de valores, tão observados na era vitoriana, e prender à narração, de forma viciosa, uma moral paradigmática que chegava a ser absurda no que se refere à educação infantil da época. Carroll satiriza, através do nonsense, esses costumes que aplicados rigorosamente tornavam-se ridículos e mesmo sem sentido.  Um bom exemplo disso é a freqüência contumaz com que a Duquesa diz a Alice: “... e a moral disso é...”. E é interesse observar que essa moral vem sempre desprovida de coerência, como:


(...) “e a moral disso é... ‘Cuide dos sentidos, que os sons cuidarão de si mesmos.’'  “Como ela gosta de achar uma moral em tudo!” pensou Alice com seus botões."

O simples contato com as obras “Alice no país das maravilhas” e “Alice através do espelho” trouxe-me uma sensação de nostalgia que a leitura traz com palpável ressonância. Sensação que busquei, posteriormente, e continuarei buscando em outras obras que me façam lembrar, rememorar, é claro, sob a perspectiva que o tempo nos faz adquirir. E assim, formando uma nova perspectiva que, embora mais madura, não me impeça de ver com certa ingenuidade tudo o que me cerca. Para perceber, como diria Lewis, o ouro no meio da escória.
Enfim, Lewis Carroll é genial por ser como o artesão que produz um trabalho artesanal simples, cuja matéria, contudo, é um verdadeiro mosaico de interpretações e ricas impressões.