quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Duas meninas ao piano.

 
    As notas fluíam harmonicamente, e era difícil imaginar que aquela suave melodia saísse das teclas e das cordas daquele velho piano, que já pertencia à família havia quatro gerações. As etéreas notas chegavam aos ouvidos de Catherine, evolvendo-a como um bálsamo. Sim, ver e ouvir Mary tocar era um bálsamo para a sua alma. Irmãs, Cathy veio ao mundo dois anos antes de Mary nascer prematura, fato que, mais tarde, foi associado à precocidade da jovem. A verdade é que a palavra “prendada” é empregada muitas vezes frivolamente, aplicado à Mary, contudo, o sentido da alcunha alcançava a sua quintessência. Aos quatro anos, já mostrava inclinação para a música e, ao mesmo tempo, expandia seu talento artístico para a pintura. “Tudo que nossa Mary toca vira obra-prima! É um talento divino!”, afirmava a Sra. Johnson, quem, está claro, encorajava calorosamente “o prodígio Mary”. 
  Cathy, por outro lado, era dona de uma imaginação singular, que era estimulada por seu insaciável apetite por leitura, tornado-a capaz de pôr sangue nas veias de seus heróis fantásticos. Agora ela ouvia sua irmã, debruçando-se languidamente sobre a cauda do piano. Se o seu corpo denunciava negligência, os seus olhos, ao contrário, revelavam vívido interesse. Indiferente a isso, Mary lia compenetradamente a partitura. Jogara para trás seus longos cabelos ligeiramente ondulados. Presa aos cabelos, que mais pareciam cascatas douradas, havia uma fita azul, que combinava com a musselina de seu vestido branco como espuma do mar. A musselina envolvia-o na cintura, formando um grande laço nas costas. Já o laço que prendia seu cabelo, impedia que mechas atrapalhassem suas vistas enquanto lia as notas a executar. Tinha esse hábito de prender as madeixas sempre que se dedicava a uma tarefa que exigia toda a sua atenção.  Essa postura metódica e atenta, quase adulta, contrapunha-se às maneiras desleixadas e distraídas da irmã mais velha que a observava como um discípulo a um mestre.
   A pedido de Cathy, Mary tocaria Rêverie, de Debussy, a música dileta de sua irmã, que devaneava ao seu lado, ainda inclinada sobre o piano, com os olhos agora perdidos na partitura que tentara em vão decodificar, o que fez as suas faces corarem. Assim como Mary, seus cabelos estavam seguros por um laço, porém rosa, e o seu vestido igualmente rosa, tornava natural, e mesmo angélico, o seu enrubescimento. E então, as notas... As notas que a enlevavam e a deslocavam para paisagens bucólicas, pinturas queridas, versos soltos em sua mente e aos quais a sonata conferia indizível eloqüência. Consciente de sua inaptidão para a leitura musical e de seus ouvidos obtusos, a Srta. Johnson mais velha se sentia como Dante no paraíso que ao ouvir um inefável canto, embora não apreendesse seu sentido, sentia-se, no entanto, tocado por sua beleza: 
                    “E, como a harpa ou viola afinada,
                     mesmo pra quem acorde não conhece,
                     as cordas tesas dão um sopro que agrada,

                     assim dos lumes, que a cruz enaltece,
                     o canto que ora por ela surgia
                     me enlevava sem que o hino entendesse.”[1]

   De modo que, da mesma forma que o enamorado não precisa ter profundo conhecimento da constituição e desenvolvimento da formosa rosa e, por sua vez, a dama com ela honrada, para admirarem sua efêmera beleza ou, ainda, um sonhador a contemplar as estrelas, saber de onde vêm e como surgiram os astros, Cathy não precisava encontrar os dós, os mis e os fás em Debussy para se sentir deleitada.
   Para Mary, Debussy era doce aroma para os seus ouvidos aguçados, todavia Beethoven tinha a sua preferência. E como amava tocar Waldstein! Orgulhava-se de fazê-lo tão impecavelmente; quando tocava essa sonata amada sentia sua branca face se abrasar e corar, não de vergonha, mas de júbilo. Seu corpo todo se entorpecia e, nos momentos de maior concentração, cerrava os olhos para que as notas fossem a única coisa que seu cérebro pudesse visualizar. Nessas circunstâncias, tinha pequenos tiques, contrações musculares, que se repetiam fora de propósito, como o sacudir a cabeça, o que delineava a nítida impressão de que naqueles instantes de frenesi seu cérebro em brasas realizava complexos processos cognitivos e no seu sangue corriam eletricidade e adrenalina. “Ah! Beethoven é um gênio! E minha Mary também!”, gabava-se a Sra. Johnson, enquanto para a filha nada mais existia, havia um apagamento exterior, e toda a sua alma se diluía nas notas advindas de seus ágeis dedos. O Sr. Johnson, em seu patriotismo, tinha preferência pela terceira sinfonia, fruto da veemente tendência revolucionária de Beethoven, que traduzia o tema da exaltação ao herói nacional, cuja figura estava personificada em Napoleão Bonaparte, esse que foi amado e, mais tarde, odiado pelo compositor alemão. Já à Sra. Johnson, indiferente à política e ao imperialismo francês, agradava, sobretudo, a sexta sinfonia, porque amante do campo e da simbiose entre homem e natureza, apreciava tudo aquilo que diluía na alegria a tragédia humana, os cantos de rouxinol, a singeleza idílica e, por fim, a paz.
    Mary acabou de tocar Rêverie, recebendo aplausos e elogios calorosos, enquanto Cathy lhe dizia: 
                 “Oh, quão curto é o dizer, e traiçoeiro,
                  para o conceito! este, para o que eu senti,
                  julgá-lo “pouco” é quase lisonjeiro.”[2] 
E, dito isso, a Srta. Johnson mais nova lhe retribui com um satisfeito sorriso de agradecimento .


Sobre a pintura inspiradora: 
Duas meninas ao piano,(Jeunes filles au piano) de Renoir. 1892, óleo sobre tela, Musée d'Orsay (França).
"Esse quadro corresponde à época em que Renoir se reencontrou com um impressionismo leve, impregnado de doçura. Não há cores agressivas nem apenas linhas duras. A tela é dominada pela mais absoluta harmonia. Uma combinação de cores em que o pintor utilizou variações sutis de alaranjados misturados a verdes e amarelos. Os frágeis rosados roçam os brancos, que se encontram realçados pelo azul pérola.(...) A harmonia também está presente nos rostos semelhantes - apesar do diferente tom dos cabelos - que comungam o mesmo prazer pela música."
(fonte: CAMPS, Teresa, professora titular de História da Arte; Universidade Autônoma de Barcelona; Coleção Folha, Grandes Mestres da Pintura, nº16.) 

NOTAS:
[1] ALIGHIERI, Dante. A divina comédia, o paraíso (part. III). Canto XIV.
[2] ALIGHIERI, Dante. A divina comédia, o paraíso (part. III). Canto XXXIII.
OUVINDO: Debussy, piano works; Beethoven, sexta sinfonia. 

3 comentários:

  1. Amei o texto, e devo dizer: pintura fabulosamente bem escolhida. Renoir é o meu pintor impressionista favorito (ao lado de Degas).

    Lu, adoro seus textos...temos que nos reunir para tomar chá e criar vidas no papel, o que você acha?

    Beijinhos

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  2. PS: Beethoven é, de fato, genial. Simplesmente genial. Com muuuita vergonha admito nunca ter escutado a música que você citou no texto. Deixo uma dica (embora ache que você conheça a música): escute a Moonlight Serenade. É maravilhoso. Aquilo é um deleite e me oferece inspiração e paz.

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  3. Você é excepcional!
    Assim como Renoir sabia como conduzir um pincel e Beethoven sabia discorrer seus dedos pelas teclas de um piano e tirar delas as mais belas notas, você tem o dom de poder fazer das palavras as mais fabulosas frases e o amontoado delas, um magnífico texto!
    Uma verdadeira arte são as tuas palavras que constroem frases e textos tocantes, singelos e fantásticos como a doçura das melodias de Beethoven e a alegria expressada nas pinturas de Renoir!
    Parabéns!

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